JUDEU, MULÇUMANO E CRISTÃO
Ao me deparar com o assento de óbito do ano de 1661 de um indivíduo chamado Matheus de Monserrate, que nasceu judeu, tornou-se mouro e, finalmente, converteu-se ao cristianismo, despertou minha curiosidade em saber como teria sido essa sua aventura por três religiões e quais os motivos que o conduziram por essa saga!
“[...] Matheus de Monserrate faleceu aos dezesseis dias do mês de junho de mil seiscentos de sessenta e um, pobre, está sepultado no adro da [Igreja de Nossa Senhora] de Monserrate. Este homem era hebreu de nação, depois mouro, depois convertido à fé de Nosso Senhor Jesus Cristo. Está o seu assento do protesto que fiz, e de como foi batizado nesta Igreja, às fls 172 do livro de batizados. E que fiz este termo que assinei ut supra; Augusto Maciel Fernandes [...]” [destaquei]
O padre que redigiu o assento de óbito diz que fez, no livro de batismos da freguesia às fls. 172. um assento do “protesto” de “como foi [Matheus de Monserrate] batizado”. O termo “protesto”, na verdade, não se trata de uma contestação, mas, em sentido jurídico, de uma manifestação de alguém no sentido de declarar de modo formal a intenção de realizar alguma ação ou assumir algum compromisso. De fato, ao ler esse “protesto”, constatei que o mesmo é um termo circunstanciado da história de vida desse homem, bem como de sua intenção de se tornar cristão. Poderia fazer um arrazoado do que consta nesse assento, mas prefiro deixar que o leitor possa ir, como eu, à medida que for lendo o texto, satisfazendo sua curiosidade e surpreendendo-se com a história desse judeu errante:
“[...] Aos quinze dias do mês de outubro de mil e seiscentos e cinquenta, nas casas de minha morada, apareceu Azarea, homem de nação hebreia, filho de Michael e Missouda, hebreus da Cidade de Trebles [sic] na Barbária [região no Norte da África, hoje conhecida por Magreb]; e disse que na primeira sua idade fora com mercadorias a Cidade de Veneza, e depois casou na dita cidade de Trebles com [uma] hebreia, a qual matara por ser adúltera, juntamente [com] alguns cúmplices, razão pela qual fora paleado [sic], e ficara deste castigo cruel e aleijado como se viu, e fora desterrado da dita pátria sendo de idade de vinte anos, três de casado, e lhe confiscaram os bens pelo que andava medicando por aquelas partes, [...] passado nisso doze anos, e viera ultimamente vivendo sempre na Lei de Moisés, daí a Bona [sic] cidade do Reino de Argel, aonde com temor de morte e por força o fizeram professar a maldita seita de Maomé, e logo se passara a Argel onde esteve há três anos guardando os navios del Rei, e neles fizera alguma saídas ao mar e à pilhagem e à candia [sic]; e que desde que se vira viúvo e desterrado, sempre tivera ânimo de se já batizar, e morrer na fé de Cristo e desejava para isso aportar em terra de cristãos, como sucedeu aos dezesseis de julho do presente ano [1650] em Caminha onde pediu o santo batismo, e que como este intento persevera, e, em cumprimento a ele, tinha vindo a esta minha casa responder a doutrina como tinha aprendido, como vem a saber o Padre Nosso, Ave Maria, Creio em Deus Padre, os mandamentos da lei de Deus e os [...] da Santa Igreja e [os] sete sacramentos com a declaração necessária, e que desde logo abandonaria a perfídia judaica e maometana, e que desprezava a hebraica superstição e a depravada seita de infidelidades, que abjurava a Satanás e a todas suas obras e pompas e só queria e protestava viver e morrer na Lei do Santíssimo Cristo Deus e homem verdadeiro a quem confessava por verdadeiro Messias prometido na Lei e profetas, e que no fim do mundo havia de vir julgar vivos e mortos, e que finalmente cria e professava o que a Santa Igreja Romana mandava e ensinava, e que sempre a ela queria obedecer como verdadeira mãe e esposa do Espírito Santo, que logo me pediu e requereu que posto que o tinha catequisado o quisesse batizar como pároco a quem pertencia por estar na mesma paróquia, [...] ante estas [testemunhas] e as adiante nomeadas e logo assentei que o batizaria no domingo que serão vinte três [dias] do presente [mês], e que lhe poria o nome Matheus Monserrate, assim o pediu [...].”
Logo a seguir, foi lavrado o assento de batismo de Matheus de Monserrate, o judeu renegado, o mulçumano forçado e, agora, o cristão por livre vontade:
“[..]Matheus de Monserrate, supra dito, batizei aos vinte e três dias do mês de outubro de mil seiscentos e cinquenta, com todas as solenidades e protestações que se contem no Ritual Romano, foi seu padrinho o Mestre de Campo e governador da fortaleza desta Vila Manoel Lopes Brandão, em fé do que eu Augusto Maciel vigário da dita paróquia fiz este assento que assinei com o dito padrinho, e Miguel Bezerra da Rocha, tenente na dita fortaleza, que a este batismo assistiu, era ut supra. Augusto Maciel Fernandes, Manoel Lopes Brandão, Miguel Bezerra da Rocha.[..]”
Onze anos depois de seu batismo, Matheus de Monserrate faleceu pobre na Vila de Viana do Castelo. Embora a cronologia no relato feito pelo vigário não possibilite estimar com exatidão a idade de Matheus de Monserrate ao falecer, é possível supor que fosse idoso, pois não há notícia que, depois de sua conversão, tenha se casado, ou que tenha deixado descendência ilegítima.
Nos anos 1600, a Inquisição teve atuação muito intensa, causando grande apreensão às pessoas que não eram “legítimas e inteiras cristãs-velhas sem raça alguma de judeu, mouro, mourisco, mulato, herege ou outra infecta nação, ou que pagassem finta lançada a gente de nação hebreia”. Contudo, nosso personagem, convertido ao cristianismo por livre e espontânea vontade, certamente não teve comportamento que o comprometesse perante o Tribunal do Santo Ofício.
O certo é Matheus de Monserrate, que um dia se chamou Azarea e também atendeu por algum outro nome islâmico, encontrou em Viana do Castelo, como cristão, a tranquilidade e segurança para o final de sua atribulada vida.
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